A Verdade à Mesa: O Que Comemos e O Que Dizemos Comer 
Um ensaio emocional e reflexivo sobre o silêncio íntimo da alimentação quotidiana

A Comédia Social da Comida: Entre Verdades e Aparências

É de notar, com tristeza e curiosidade, que quase ninguém oferece informações verdadeiras quando interrogado sobre o que come — sobretudo no contexto de uma investigação científica. As respostas convencionais, formatadas como mantras da boa cidadania alimentar, inundam os inquéritos com a mesma previsibilidade de uma receita de sopa de legumes.

Na melhor das hipóteses, as sondagens revelam apenas as normas atualmente válidas — o que se espera que se diga, o que é socialmente aceitável declarar. Mas o que as pessoas realmente comem é, frequentemente, outra história. Uma história mais íntima, mais mundana, por vezes até mais deliciosa.

A Vergonha do Hambúrguer e a Ilusão da Alta Cozinha

Quem se atreveria, diante de um jornalista, nutricionista ou antropólogo, a dizer com franqueza: “O meu jantar favorito é uma caixa de nuggets e uma Coca-Cola bem gelada”?

Vivemos num mundo onde os media celebram obsessivamente a alta gastronomia, os chefs com estrelas Michelin e os pratos esculpidos como esculturas minimalistas. Simultaneamente, alimentam o desgosto pela comida industrializada, demonizando a gordura, o açúcar e os snacks como pecados capitais da vida moderna.

Médicos ameaçam-nos com ataques cardíacos, diabetes e morte prematura, como se cada mordida de batata frita fosse um passo rumo ao abismo. Como consequência, muitos camuflam a realidade alimentar sob um verniz socialmente aceitável.

Comer é Íntimo — Como o Sexo, Como o Silêncio

Tal como o sexo, o comportamento alimentar é algo profundamente íntimo, escondido do mundo exterior. Podemos partilhar receitas, pratos, refeições — mas o ritual solitário da comida, no conforto da casa, é muitas vezes impenetrável.

A partilha de refeições é, sem dúvida, uma ponte: um processo lento de desconstrução, onde gradualmente deixamos de fazer “esforços especiais” para o convidado à mesa e começamos a revelar a nossa rotina alimentar autêntica — sem floreados, sem mise-en-place.

Mas até lá, a comida mantém-se um segredo doméstico.

A História Alimentar que Não Se Escreve

Nos trabalhos académicos sobre alimentação e história da gastronomia, há uma tendência marcante: foca-se no desenvolvimento da alta cozinha, nas receitas nobres, nas cortes europeias e nas revistas de culinária decorativa. O discurso gastronómico oficial ignora frequentemente a banalidade poética da cozinha do dia a dia.

A cozinha doméstica — mundana, repetitiva, muitas vezes femininapermanece em grande parte oculta, talvez por ser considerada um “mundo sem história”. Contrasta com os palácios culinários de chefs masculinos e receitas sofisticadas, erguidas em sociedades hierarquizadas da Europa e da Ásia, em contraponto à vivência alimentar africana, mais comunitária e orgânica.

A história que se escreve é de banquetes, não de refeições ao balcão da cozinha.

Receitas como Sonhos e Livros como Espelhos

É aqui que entra um fenómeno curioso: coleccionamos receitas como quem colecciona sonhos. Elas têm uma função semelhante à dos livros — servem mais para pensar e sonhar do que para cozinhar de verdade.

Os livros de culinária são muitas vezes lidos como conquistas simbólicas do mundo, devorados no conforto da poltrona com a mesma gula com que se lê uma grande obra de ficção. “Pegue”, dizia-se casualmente, como se o mundo inteiro estivesse disponível entre prateleiras: “Uma colher de sopa de sal de gengibre.” Mas… onde se encontra isto mesmo?

A Cozinha Real Continua Invisível

Mesmo obras magistrais como O Cultivo do Apetite, de Stephen Mennell — que nos guia pela transformação das cozinhas inglesa e francesa desde a Idade Média — deixam a sensação de vazio. No final, ainda não sabemos o que as pessoas comem em casa, em frente à televisão, num prato de plástico ou de barro.

A cozinha real continua invisível porque não se dá bem com holofotes. É frugal, silenciosa, resistente. E talvez por isso, mais reveladora de quem somos do que qualquer prato servido por um maître.

Conclusão: O Que Resta no Prato é História Não Contada

Neste ensaio, pretendemos iluminar o que se esconde entre garfadas discretas e silêncios sociais. A nossa alimentação revela medos, desejos, status e fantasias, mas raramente comemos aquilo que dizemos comer — e raramente dizemos que comemos o que realmente comemos.

Talvez esteja na hora de aceitar a nossa humanidade alimentar: feita de contradições, de prazer culpado, de receitas que nunca são seguidas à risca. Talvez devêssemos celebrar a cozinha real como ela é, sem o peso de expectativas académicas ou estéticas.

Porque, no fundo, o que resta no prato não é apenas comida — é identidade, é verdade, é uma história que ainda não se escreveu.
 
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4. A TEORIA DOS PRODUTOS        
13. AS ENTRADAS, ACEPIPES         
24. A COZINHA FRIA         
25. SOBRE SOBREMESAS          

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