Entre a verdade dos livros e a realidade Memória, Sonhos e a Tigela de Sopa Fumegante Um ensaio emocional sobre a cozinha imaginada e a infância vivida “Morangos Silvestres” em Neve — Uma Mesa de Impossíveis “Vinte pés de porco” — mas só cabem cinco na minha caçarola. “Salada de dente-de-leão finamente aparada” — claro, tudo fresco. E “morangos silvestres”, mesmo quando está a nevar lá fora. Estas imagens extraídas dos livros de culinária são poesia do possível. Pintam cenários que não obedecem a estações nem a limitações logísticas. São convites para sonhar, não para cozinhar. O mundo dos livros de receitas vive sem escassez, um universo de abundância onde os seus autores — homens e mulheres — caminham com otimismo desarmante, quase pastoral. Fé Gastronómica e Manuais de Sobrevivência A fé desses autores — contagiante e sem dúvidas — reside na certeza de que tudo é possível à mesa, desde que haja uma colher de sal de gengibre (mesmo quando não fazemos ideia onde a encontrar). É por isso que adoro os livros de receitas exóticas, mas também os manuais de sobrevivência — como os de Bradford Angier. No seu Living Off the Country: How to Stay Alive in the Woods, Angier relata: “Acabaram de matar um alce… e estão com saudades de uma tigela de sopa quentinha.” Eu… matar um alce? Não sei. Talvez nunca saiba. Mas a imagem da sopa fumegante aquece mesmo aqueles que se perdem no deserto. E é aí que reside o milagre: até os caçadores mais aguerridos desejam reconectar-se com a figura materna, com a sopa que talvez não fosse incrível, mas deixou uma impressão duradoura. Livros de Culinária: O Que Sonhamos vs. O Que Fazemos Os livros de culinária são tesouros oníricos para quem se interessa pelo imaginário alimentar — muito mais do que por uma prática realista. Prometem prazeres, mas são sobretudo escapatórias. São mitos modernos do nosso mundo de mercadorias — e a sua presença em lojas de departamentos, como em Banguecoque, usada como decoração ao lado de casacos e camisas masculinas, revela essa desconexão entre o sonho e a ação. Quebrar o Tabu Científico: Das Estatísticas à Memória Só um salto ousado — um rasgo na disciplina — nos pode retirar deste impasse entre o que se diz e o que se faz. Como escreve o folclorista suíço Richard Weiss, as questões de estômago sempre foram abordadas nos círculos populares sem pudor: com verdade e espontaneidade, com espanto e sabor. Por isso, abandono agora toda vergonha e relato o que se comia em minha casa na infância — ou melhor, o que me recordo disso. Porque o que esquecemos tende a ser acessório, e o que permanece ajuda a definir o nosso comportamento, os nossos valores — aquilo que Pierre Bourdieu chamou de habitus. A Escola da Vida É a Mesa da Infância A época: início da década de 1950. O lugar: uma aldeia rural nos arredores de Zurique, Suíça. As circunstâncias: uma família nuclear — mãe, pai, filho — e uma tia solteira. Quando a tia faleceu, uma governanta foi contratada para o verão e outono. A filha já tinha partido. O pai, oriundo de uma família de pequenos agricultores, trabalhava como operário não qualificado numa gráfica local. Os seus horários eram longos e pouco flexíveis — de manhã cedo e à noite, fins de semana incluídos. No entanto, a mesa permanecia um ponto de encontro e de construção de valores. O Sabor do Cotidiano Não havia “vinte pés de porco”, nem “morangos na neve”. Mas havia:
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Batatas cozidas com cebola e óleo.
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Pão escuro, feito em casa ou comprado ao padeiro que passava.
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Leite talhado, por vezes oferecido com mel para adoçar.
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Pequenos pedaços de carne que surgiam ao domingo, com uma reverência quase cerimonial.
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Maçãs guardadas para o inverno, com a pele rugosa e o interior adocicado.
A governanta trazia consigo técnicas aprendidas com avós e senhoras da vila. Sem receitas escritas. Sem medidas exatas. Com intuição e saber transmitido oralmente. Conclusão: A Verdade Está na Tigela de Sopa No fim, a tigela de sopa fumegante é o símbolo de tudo o que a cozinha representa: cuidado, memória, desejo, verdade. Os livros de receitas podem oferecer mundos — mas a cozinha doméstica oferece raízes. Este relato não pretende ser exaustivo, nem académico. É uma invocação emocional da verdade alimentar, longe das receitas que mandam “pegar numa colher de sal de gengibre” como se fosse coisa simples. Aqui não há culinária de espetáculo — há lembranças, gestos, valores. Porque a mesa não é apenas lugar de comer — é uma escola para a vida.
INDEX CULINARIUM XXI, Divulgação Global