A História dos Livros de Cozinha: Da Tradição Oral ao Digital O Registo do Sabor: Quando Começou a Escrita Gastronómica A cozinha é um dos reflexos mais fiéis da história da humanidade. A forma como comemos diz muito sobre como vivemos, e os livros de cozinha surgem como testemunhos escritos das práticas, ingredientes e gostos de cada época. Antes de serem livros, as receitas eram transmitidas oralmente, de geração em geração, num contexto familiar ou comunitário. Essa tradição oral manteve-se viva durante séculos, até que o desejo de sistematizar o conhecimento culinário levou à criação dos primeiros manuscritos dedicados à arte de cozinhar. O primeiro registo escrito conhecido que se pode considerar um livro de receitas é o Apicius, também chamado De re coquinaria, atribuído a um autor romano anónimo, mas frequentemente ligado ao nome de Marcus Gavius Apicius, um gastrónomo do século I. Este manuscrito reúne receitas do Império Romano e mostra-nos uma cozinha rica em especiarias e técnicas que, curiosamente, não são muito diferentes das usadas hoje em dia na alta cozinha. Da Idade Média à Renascença: Cozinhar como um Saber de Corte Durante a Idade Média, os livros de cozinha passaram a circular entre a nobreza e o clero. Os mosteiros, grandes centros de cópia e conservação do saber, tiveram um papel essencial na transmissão destes manuscritos. Um exemplo relevante é o Le Viandier, atribuído ao cozinheiro francês Guillaume Tirel, conhecido por Taillevent, datado do século XIV. Este livro representa uma verdadeira codificação do saber culinário da corte francesa, combinando técnicas, menus e uma noção emergente de etiqueta à mesa. Com a invenção da imprensa no século XV, a difusão dos livros de cozinha intensificou-se. O conhecimento culinário começou a chegar a um público mais vasto, ainda que predominantemente alfabetizado e de classe alta. O século XVI vê surgir obras como o Libro de arte coquinaria de Maestro Martino, considerado o pai da cozinha italiana moderna, onde se nota já uma preocupação com o equilíbrio de sabores e a estética do prato. Séculos XVII e XVIII: O Saber Gastronómico como Património A partir do século XVII, os livros de cozinha deixam de ser apenas colecções de receitas e começam a incluir conselhos práticos, reflexões sobre ingredientes e até noções de saúde e higiene. Este período marca o início da valorização da cozinha como uma ciência aplicada e uma arte social. Destaca-se aqui Le Cuisinier François (1651) de François Pierre La Varenne, que introduziu princípios fundamentais da cozinha francesa clássica, como o uso de molhos leves e a separação entre doces e salgados. Este livro é um marco na transição para uma culinária mais racional, com medições e técnicas descritas de forma mais sistemática. Em Portugal, o primeiro grande livro de receitas é o Arte de Cozinha de Domingos Rodrigues, publicado em 1680. Cozinheiro da Casa Real, Rodrigues apresenta uma compilação que mistura influências ibéricas, francesas e árabes, revelando o ecletismo e sofisticação da mesa portuguesa da época. Século XIX: A Democratização da Receita Escrita O século XIX marca um ponto de viragem. Com o crescimento da burguesia e a expansão da alfabetização, os livros de cozinha tornam-se acessíveis a um público mais amplo. As receitas passam a ser escritas para mulheres comuns, donas de casa que queriam aprender a cozinhar para a sua família. Um exemplo incontornável é o clássico inglês Mrs Beeton’s Book of Household Management (1861), de Isabella Beeton, que combina receitas com conselhos sobre a gestão doméstica. Em Portugal, O Cozinheiro dos Cozinheiros, de autor anónimo (publicado pela primeira vez em 1870), tornou-se um dos manuais de referência, com centenas de receitas detalhadas para uso quotidiano e festivo. Este período coincide com a consolidação das identidades gastronómicas nacionais e com a valorização da cozinha como expressão cultural. Os livros de cozinha começam também a incluir ilustrações, tabelas e índices, facilitando a consulta e incentivando a experimentação. Século XX: Da Tradição à Inovação Com a revolução industrial e o surgimento de novos electrodomésticos, as receitas adaptam-se a uma nova realidade doméstica. O século XX é marcado pela diversificação do formato e do conteúdo dos livros de cozinha. De um lado, persistem obras de valorização da tradição, como os clássicos regionais; do outro, emergem autores inovadores, que introduzem a fusão de sabores, dietas alternativas e abordagens internacionais. Em Portugal, destaca-se a figura de Maria de Lourdes Modesto, muitas vezes apelidada de "a diva da gastronomia portuguesa", com o seu livro Cozinha Tradicional Portuguesa (1982), que preserva e sistematiza receitas ancestrais de todo o país. Ao mesmo tempo, chefs de renome internacional começam a publicar os seus próprios livros, não apenas com receitas, mas com conceitos, histórias e reflexões sobre a arte de cozinhar. A cozinha ganha estatuto artístico e filosófico, e o livro de receitas torna-se também um manifesto cultural. Século XXI: O Livro de Cozinha na Era Digital Com a chegada da internet e das redes sociais, muitos previram o desaparecimento dos livros de cozinha em papel. No entanto, o que se observou foi uma transformação e uma valorização do livro como objecto. Hoje, os livros de cozinha são simultaneamente manuais práticos e peças de design, com fotografias de alta qualidade, papel premium e narrativas envolventes. Ao mesmo tempo, a partilha de receitas online, em blogs, vídeos e redes sociais, tornou-se ubíqua. No entanto, o livro mantém uma aura de permanência e de confiança. Autores contemporâneos como Yotam Ottolenghi, Nigella Lawson ou, em Portugal, Henrique Sá Pessoa, conjugam presença digital com edições cuidadas em papel, criando uma ponte entre o efémero e o duradouro. Além disso, a consciência ecológica e a valorização do património alimentar têm impulsionado uma nova geração de livros que abordam a cozinha de forma sustentável, ética e consciente. Conclusão: Cozinhar é também Escrever História O percurso dos livros de cozinha acompanha a evolução da sociedade. De manuais elitistas a instrumentos domésticos, de compêndios de saber tradicional a plataformas de inovação, os livros de receitas são mais do que simples colecções de instruções — são arquivos vivos da cultura alimentar, espelhos dos nossos valores, gostos e transformações. Ao folhear um livro de cozinha, lemos não só sobre ingredientes e técnicas, mas sobre modos de viver, de pensar e de partilhar. Em cada receita, há um pedaço de história — e cada cozinheiro, ao recriá-la, torna-se parte desse fio narrativo que une o passado ao presente.
INDEX CULINARIUM XXI, Divulgação Global