Chocolate: entre o pecado doce e o jejum — a história católica de um prazer permitido Como uma bebida de origem “pagã” se tornou, no coração do catolicismo, um consolo líquido que não quebrava o jejum.
Do cacau sagrado ao “alimento dos deuses” Muito antes de chegar às chávenas europeias, o cacau foi moeda, remédio e oferenda. Entre Maias e Astecas, os grãos pagavam tributos e entravam nos rituais. A bebida — xocolātl (xococ = amargo, ātl = água) — servia-se escura e picante, com pimenta, milho e mel: tónica, não sobremesa. No século XVI, o cacau chega a Espanha; a Europa estranha o amargo. Conventos no México e, depois, cozinhas de Sevilha e Madrid adoçam a equação: açúcar, baunilha, canela e calor. O chocolate deixa de ser caldo ritual para se tornar bebida reconfortante — hábito meio místico, meio doméstico.
Do amargo ritual ao conforto quente: o cacau aprendeu a falar europeu.
Roma decide: “Potus iste non frangit jejunium” Século XVI, tempos de Reforma e Contrarreforma: acende-se uma dúvida prática — o chocolate quebra o jejum? Uns dizem que, por ser nutritivo, violaria o espírito quaresmal; outros lembram que é líquido, e a lei incide sobre sólidos. O Papa Pio V recebe o parecer que faria escola: “Potus iste non frangit jejunium.” Chocolate bebido não quebra o jejum. No século XVII, o cardeal dominicano Brancaccio reafirma a linha. Não se canonizava o prazer; aplicava-se rigor jurídico e uma leitura realista da prática. Efeito colateral: o tentador converte-se em variável permitida do jejum — energia morna para quem rezava mais e comia menos. Hoje: jejum e abstinência são restritos na Quaresma; bebidas não quebram o jejum, desde que não sirvam para contornar a penitência.
Jesuítas vs. dominicanos: uma disputa com perfume de canela Aceite em Roma, o chocolate irrita e seduz. Em conventos e salões, multiplicam-se receitas e sermões. Jesuítas destacam utilidade e potencial missionário; dominicanos respondem com cautelas morais. Sopram boatos: afrodisíaco, “alimento de Vénus”; moralistas opinam, médicos contestam, cozinheiras sorriem. Há crónicas saborosas: em Chiapas, a proibição de beber chocolate durante a missa acendeu fúrias; noutros lugares, o debate subiu ao púlpito. Enquanto isso, Espanha, França e Itália adotam o chocolate quente como distinção. No norte protestante, vence o café — estímulo de trabalho e comércio.
Da aristocracia à fábrica: a Europa rende-se (e industrializa) Séculos XVII–XVIII: o chocolate é artigo de luxo. Chega em porcelanas, inspira serviços de chávenas e literatura de costumes. No século XIX, vem o salto: torrefação, moagem, conchagem, misturas com leite e açúcar estáveis, moldes e embalagens. Suíça afina processos; Inglaterra abre mercados; França estiliza o consumo. O chocolate deixa de ser apenas bebida e torna-se tablete, bombom, creme — uma doçura com método e escala.
Portugal: memória de convento, mesa de inverno e vanguarda artesanal Entrada ibérica, consolidação com doçaria conventual e comércio. O chocolate quente acompanha serões frios; mais tarde, bombons desfilam em latas e montras de Natal. Hoje, convivem marcas históricas com uma geração bean-to-bar que torra e mói origens como quem cuida de terroirs.
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Pastelaria: mousses intensas, tartes com amêndoa do Douro ou avelã transmontana, brownies com Vinho do Porto.
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Ligação à terra: azeite virgem extra e flor de sal sobre 70% — sotaque português inconfundível.
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Cultura: festas e eventos juntam tradição e modernidade.
E a mesa quotidiana: a chávena espessa e brilhante no café de bairro; a tablete de negro intenso que parte com estalo limpo; o ritual de partilhar o quadrado final.
Saúde: quando o prazer também protege A ciência confirma o instinto: flavonoides do cacau (sobretudo em ≥70%) associam-se a benefícios cardiovasculares e neurocognitivos. Ação anti-inflamatória, antioxidante; apoio ao humor (teobromina, triptofano, magnésio). Como escolher e usar bem:
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Preferir listas curtas (cacau, manteiga de cacau, açúcar; leite e baunilha quando aplicável).
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Desconfiar de gorduras vegetais não cacau e açúcares em excesso.
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Moderado basta: porção pequena diária entrega prazer e benefício.
Jejum, prazer e ética: o triângulo que importa hoje Se outrora Roma decidiu que chocolate não quebrava o jejum, hoje pesa outra medida: a ética do cacau. O passado do açúcar atlântico pesa; por vezes, o presente também. Vale procurar:
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Origem e transparência (rótulos claros, comércio justo, preço digno na origem).
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Sustentabilidade (sem desflorestação, trabalho condigno, embalagens responsáveis).
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Produção local (artesanais portugueses que juntam técnica, respeito e criatividade).
Assim, partir uma tablete volta a ser penitência boa: um exercício de consciência que aprofunda o prazer.
Doçuras portuguesas: dois rituais para fazer em casa Chocolate quente “à portuguesa” (espesso e sem culpas)
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500 ml leite (ou bebida vegetal)
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120 g chocolate negro 70% (picado)
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1 c. sopa cacau em pó
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1–2 c. sopa açúcar (a gosto)
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1 c. chá amido de milho (opcional, para espessar)
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Pitadas de canela e sal
Aquecer o leite; juntar açúcar, sal, cacau e amido; mexer até dissolver. Fora do lume, incorporar o chocolate; voltar a lume brando até sedoso. Final com canela. Servir espesso, de colher. Mousse negra com azeite e flor de sal
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200 g chocolate 70%
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4 ovos (gemas e claras separadas)
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40 g açúcar
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1 c. sopa azeite virgem extra + mais para finalizar
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Flor de sal
Derreter chocolate e juntar o azeite. Bater gemas com açúcar; envolver no chocolate morno. Juntar claras em castelo suavemente. Frio 4 h. Servir com fio de azeite e flor de sal — Portugal num gole.
Harmonias que cantam em português
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Vinho do Porto Tawny + chocolate com frutos secos: noz, figo, caramelo em conversa longa.
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Madeira Malmsey + bolo de chocolate: acidez viva a cortar doçura e gordura.
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Café expresso + quadrado negro: amargo nobre, final limpo — pausa perfeita.
Epílogo: um luxo que não precisa de desculpas O chocolate chegou à Europa como desafio e tornou-se permissão. Um Papa austero, em tempo de guerra e penitência, reconheceu no líquido morno um apoio legítimo à fraqueza humana. O resto foi cultura, técnica e afeto: salas aquecidas, conversas, noites de chuva, mesas de Natal. Hoje, em Portugal, o chocolate é memória e modernidade: convento e laboratório, chávena e tablete, ética e prazer. Se, na Quaresma, alguém perguntar se “quebra o jejum”, ecoa a frase latina: o chocolate bebido não quebra. O que quebra — para nosso bem — é a dureza do mundo. Um pouco. O suficiente para lembrar que, às vezes, a graça divina também sabe a cacau quente. by myfoodstreet 2023

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