Palavras Soltas…
Há dias… muitos… em que as palavras não saem.
Esforças-te até ficar rouco, até doer a garganta e a alma —
mas simplesmente não dá.
As palavras encalham.
Ficam presas entre o peito e a boca, como se temessem o mundo cá fora.
Como se não fossem suficientes.
Na garganta permanece o esforço acumulado dos dias,
dos anos até,
como se todo o peso da vida se concentrasse ali, à espera de explodir.
Seria razão suficiente para escrever os textos mais crus, mais verdadeiros,
gritos rasgados da alma, vontade de se despir em letras.
Mas tudo fica pelo silêncio.
Silenciado por lutas mais urgentes,
mais exigentes,
mais duras.
Ou simplesmente por cansaço.
Sem pio.
A força reduz-se ao esforço.
À sobrevivência.
À tentativa constante de continuar, mesmo quando não há para onde ir.
Porque as lutas, tantas delas, não foram sequer merecidas.
Porque em cada pequena vitória —
e foram tão poucas —
ficou sempre um gosto amargo,
um eco de injustiça,
uma ferida que nunca chegou a sarar.
E é esse amargo que te acompanha.
Marca-te os dias.
Segue-te como sombra.
Está em todo o lado, até nas coisas boas,
como se a alegria fosse sempre vigiada pela culpa ou pelo medo.
As palavras soltas caem por aí.
Aqui e ali, em frases desconexas, mal alinhavadas,
que só uma mente muito sã — ou muito louca — consegue decifrar.
Palavras que nascem entre o sufoco dos dias e
a frágil esperança que ainda vive no fundo do acreditar.
E então, num momento raro e quase mágico,
a escrita abre os olhos cansados.
No papel… ou no brilho pálido de um ecrã.
Mas mesmo essas palavras se perdem por aí.
Nestes dias de expetativa infindável,
nestes tempos em que a espera é o cenário principal,
em que tudo parece estar a adiar-se indefinidamente.
E o problema é que,
quando o cansaço se transforma em desistência…
aí sim, será tarde demais.
Entretanto, perdem-se horas.
Dias. Anos.
Numa luta inglória.
Porque as metas são longas.
Difíceis. Distantes.
E, no caminho, perde-se também o tempo.
O tempo da vida.
O tempo do riso.
O tempo de parar.
E essa luta…
leva com ela o esboço da força de acreditar.
Apaga o ânimo que antes moveu montanhas.
Porque quando se olha para trás e se percebe que os momentos de confirmação,
de conquista, de “valeu a pena”…
foram tão escassos, tão fugazes,
fica-se com a impressão de que se lutou por miragens.
No silêncio, marcado por uma apatia quase resignada,
os ombros encolhem-se.
À violência que passa.
Aos problemas que caem por todo o lado.
Uns mais duros, outros mais banais,
mas todos, de alguma forma, ferem.
E as referências?
Essas deixaram de puxar.
Já não inspiram.
Já não guiam.
Perderam o brilho,
tornaram-se ruído.
As palavras, essas, continuam soltas.
Mas já não se procura organizá-las.
Deixa-se que existam como são:
fragmentos de quem sente demais,
mas já não sabe por onde começar a dizer.
Talvez a salvação esteja mesmo nisso:
em aceitar que há dias em que não se diz nada.
Em que o silêncio também é linguagem.
Em que o vazio também comunica.
E talvez, um dia,
quando menos se esperar,
essas palavras soltas —
essas que hoje parecem inúteis e desajeitadas —
possam construir qualquer coisa.
Uma ponte.
Uma cura.
Um poema.
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