
Chocolate: História, Arte e Devoção em Portugal e no Mundo O chocolate comove-nos. É memória e conforto, é promessa de festa e segredo de infância, é presente de celebração e bálsamo de dias difíceis. Chamá-lo “divino” não é exagero poético; durante séculos foi visto como dádiva dos deuses, um bem raro e precioso que cruzou oceanos, impérios e rituais. Hoje cabe numa tablete humilde do supermercado ou numa caixa requintada com laço — e, em qualquer dos casos, conserva a sua aura de prazer raro e intensamente desejável.
Dos Deuses às Vagens: o Mito que Fundou um Sabor Muito antes de chegar à Europa, o cacau era alimento sagrado na Mesoamérica. Entre Maias e Astecas, o “xocoatl” era uma bebida espessa, amarga e especiada, preparada a partir de grãos torrados e moídos, misturados com água, pimenta, flores e, por vezes, mel e baunilha. Não havia açúcar — esse seria um capítulo europeu. As lendas falam de Quetzalcóatl, o deus civilizador que teria oferecido o cacau aos homens, ensinando-os a cultivá-lo. O grão de cacau era tão valioso que serviu de moeda: com ele pagava-se tributos, comprava-se alimento, media-se riqueza. Em cerimónias, o chocolate selava pactos, fortalecia guerreiros e era associado a fertilidade e sabedoria.
O Encontro com a Europa: Entre o Espanto e a Transformação No século XVI, o cacau atravessa o Atlântico. Espanha e depois Portugal conhecem o amargo poder da nova bebida. Mas é somente quando o chocolate se encontra com o açúcar — abundante no comércio europeu e atlântico — que acontece a metamorfose: o amargo ritual torna-se deleite doce, apto para salões aristocráticos, casas senhoriais e, mais tarde, para cafés e pastelarias. A partir do século XVII, o chocolate quente, muitas vezes aromatizado com canela ou baunilha, torna-se moda nas cortes europeias. Lentamente, desce dos palácios aos cafés urbanos: um lugar de conversa, imprensa e ideias onde uma chávena de chocolate espesso aquecia mãos e argumentos.
Portugal e o Atlântico do Cacau A história portuguesa cruza-se cedo com a do cacau. Rotas comerciais atlânticas e saberes agrícolas ajudaram a difundir o cacaueiro para África, onde encontrou clima e solo favoráveis. Ao longo do século XIX e início do XX, São Tomé e Príncipe tornaram-se uma das grandes origens mundiais de cacau, marcando de forma indelével a memória do “cacau de São Tomé” — expressão que ainda hoje evoca qualidade e carácter. No território continental, o chocolate ganhou cidadania plena ao ocupar confeitarias e pastelarias. Surgiram casas especializadas, marcas e fábricas que se tornaram património afectivo:
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Regina, com as suas icónicas sombrinhas e amêndoas;
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Pantagruel e Jubileu (do universo Imperial), presença constante em bolos, mousses e bombons;
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Avianense, ligada a Viana do Castelo, história industrial e memórias de Norte a Sul;
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Confeitarias artesanais como Arcádia (Porto) e novas chocolaterias de autor, em Lisboa, Porto e outras cidades, que aproximam Portugal da alta chocolateria contemporânea.
E há a Páscoa com amêndoas cobertas de chocolate, o Natal com bombons e tabletes especiais, o salame de chocolate nas festas de aniversário, a mousse de chocolate que é sobremesa de domingo em tantas casas. Portugal é também país de chocolate — no quotidiano e na celebração.
Da Vagem à Tablete: Como Nasce o Chocolate O chocolate é alquimia controlada. Cada etapa importa, e o resultado final é sempre a soma das escolhas do produtor. 1) Colheita e Fermentação O cacaueiro dá frutos (as vagens) directamente no tronco. Abrem-se as vagens, retiram-se as sementes envoltas numa polpa branca, e fermentam-se durante vários dias. Nesta fase nascem aromas precursores que definirão a personalidade do cacau. 2) Secagem e Seleção Depois, os grãos secam ao sol até ficarem estáveis e prontos a viajar. A selecção elimina defeitos e impurezas, garantindo matéria-prima nobre. 3) Torra A torra é o momento em que o cacau encontra a sua voz. Temperatura e tempo afinam acidez, amargor, notas frutadas ou torradas. Um produtor experiente sabe quando parar: o ponto de torra é assinatura. 4) Descascamento e Moagem Separam-se as cascas dos nibs (o coração do grão) e mói-se até obter massa de cacau — uma pasta quente, gordurosa, intensamente perfumada. 5) Prensagem e Mistura Da massa, alguns produtores extraem manteiga de cacau (gordura nobre) com prensas. Para a tablete, combina-se massa de cacau, manteiga de cacau, açúcar e, no caso do chocolate de leite, leite em pó. A proporção entre estes elementos dita corpo, doçura e derretimento. 6) Conchagem Processo prolongado de mistura e arejamento que refina textura e arredonda sabores. É aqui que o chocolate perde arestas e ganha sedosidade. 7) Temperagem O chocolate é levado a curvas precisas de temperatura para estabilizar cristais de manteiga de cacau. O resultado é brilho, estaladiço limpo ao partir e derretimento elegante na boca. 8) Moldagem e Cura Molda-se, arrefece-se, repousa-se. Como um vinho novo, o chocolate beneficia de tempo: os aromas assentam, as notas afinam, a experiência ganha profundidade.
Inovações que Mudaram Tudo A história técnica do chocolate tem marcos decisivos:
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A prensa de cacau (século XIX) permitiu separar manteiga de cacau e reduzir a gordura na massa, viabilizando novos produtos;
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O primeiro chocolate sólido tal como hoje conhecemos surge na mesma centúria, libertando o chocolate do domínio exclusivo da chávena;
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A conchagem trouxe a suavidade e o brilho das tabletes contemporâneas;
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A aventura suíça popularizou o chocolate de leite com textura cremosa e doçura acessível;
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Hoje, o movimento bean-to-bar recupera a ideia de origem, transparência e artesanato, com pequenos produtores a trabalhar o cacau desde o grão à tablete, muitas vezes destacando origens africanas — entre elas São Tomé e Príncipe — e americanas.
Cacau, Saúde e Prazer: o Equilíbrio Possível O chocolate não é apenas indulgência. O alto teor de cacau (70% ou mais) traz flavonóides e compostos aromáticos com potencial antioxidante; a teobromina e uma pequena quantidade de cafeína conferem um estímulo suave e bem-estar. Moderação é a palavra-chave: melhores chocolates pedem porções menores e saboreadas devagar, como se lê um poema. Para quem cozinha, uma dica prática: ajuste o açúcar quando usar chocolate de maior percentagem em bolos e mousses — a intensidade de cacau aumenta e a doçura precisa de equilíbrio.
Portugal à Mesa: Receitas e Rituais Mousse de chocolate com ovos frescos, salame de chocolate com bolacha maria, bolo húmido com cobertura brilhante, trufas aromatizadas com vinho do Porto, amêndoas de chocolate na Páscoa, bombons artesanais com azeite de qualidade ou flor de sal do Algarve: o chocolate integra-se com naturalidade na nossa mesa. E há a festa: o Festival do Chocolate em Óbidos tornou-se paragem obrigatória para famílias e curiosos, com esculturas, demonstrações e competições. Nas cidades, multiplicam-se workshops e cursos de chocolateria, e não é raro encontrar pastelaria de autor a dialogar com tradição e inovação — um praliné com medronho, uma ganache com mel de rosmaninho, um bombom perfumado com poejo ou louro.
Sustentabilidade: Do Cacau à Consciência A cadeia do cacau é longa e frágil. Depende de climas tropicais, de pequenas explorações agrícolas e de práticas justas. Procure chocolate que identifique origem de cacau, que valorize relações directas com produtores e que tenha rotulagem transparente. Ao escolher, influenciamos o futuro: melhores preços para quem cultiva, mais investimento em qualidade, maior resiliência face às alterações climáticas. Pequenos gestos contam: guardar o chocolate em local fresco e seco (idealmente entre 16-20 °C), longe de odores fortes; evitar frigorífico, que pode provocar condensação e “bloom” (branqueamento por migração de gordura/açúcar). E, sobretudo, dar-lhe tempo: abrir, cheirar, partir, ouvir o estalo, deixar que derreta — o ritual também é sustentabilidade, porque valoriza o que se escolheu.
Guia de Degustação: Ouvir o Chocolate
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Olhar — brilho uniforme, sem manchas; cor coerente com a percentagem de cacau.
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Partir — som nítido e limpo indica boa temperagem.
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Cheirar — notas de fruta seca, especiarias, flores, madeira, caramelo… o nariz antecipa a viagem.
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Provar — deixe derreter na língua; avalie textura, ataque inicial, evolução e retrogosto. Um bom chocolate conta uma história em camadas.
Para harmonizar: porto tawny, madeira, moscatel de Setúbal, ginjinha ou mesmo um café expresso bem tirado — a doçura do vinho ou a tensão do café criam contrastes felizes.
Perguntas Frequentes (sem pressa, com prazer)
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Chocolate branco é chocolate? Tecnicamente, sim e não: não contém massa de cacau, mas é feito com manteiga de cacau, açúcar e leite. Quando usa manteiga de cacau de qualidade, pode ser um produto elegante, com notas de leite, baunilha e flores.
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70%, 80%, 90%… quanto mais melhor? Mais percentagem significa mais cacau e menos açúcar — não necessariamente “melhor”, mas mais intenso. O ideal é provar diferentes percentagens e origens para encontrar o seu ponto de equilíbrio.
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Porque é que algumas tabletes “florescem”? O “bloom” (aquela película esbranquiçada) resulta de variações de temperatura ou humidade. Não é perigoso, mas altera textura e aparência. Guarde o chocolate estável e protegido.
Da Indústria ao Autor: o Hoje do Chocolate Portugal vive um momento plural: marcas históricas convivem com chocolateiros artesãos, restaurantes exploram sobremesas de assinatura, e há uma geração curiosa a pedir origem, percentagem, processo e história. Encontramos tabletes single origin com cacau africano, sul-americano e asiático, e também bombons de autor com ingredientes portugueses — azeite, flor de sal, citrinos, frutos secos do Douro e Trás-os-Montes, ervas aromáticas do nosso litoral e interior. Este movimento educa o paladar e valoriza o conhecimento: desde a fermentação cuidada nas origens até à temperagem perfeita no ateliê, cada gesto constrói sabor.
Uma Palavra sobre Emoção O chocolate é linguagem sensorial. Convoca memórias (a cozinha da avó, o papel colorido a estalar), convoca lugares (a vitrine da pastelaria, o banco de jardim onde se partilha uma tablete), convoca pessoas (o gesto de oferecer, o silêncio cúmplice do primeiro quadrado). Não é necessidade — é desejo que nos humaniza. Como veludo e seda na pele, o chocolate veste a vida de textura e brilho.
Conclusão: Entre o Divino e o Quotidiano Se outrora foi “bebida dos deuses”, hoje o chocolate é ritual humano. Vive no extraordinário de um bombom de autor e no quotidiano da tablete que se parte ao final da tarde. Em Portugal, a sua história confunde-se com a nossa: rotas, trabalho, festa, doçaria, conversa, hospitalidade. Quando partir o próximo quadrado, faça um pequeno voto de atenção: olhe, cheire, prove devagar. Talvez descubra, nesse instante, que o chocolate continua a ser uma forma discreta de eternidade — divino no mito, profundamente humano no prazer.

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