Vitela — o camaleão da cozinha

Uma carne com história antiga

A vitela, carne tenra do bezerro jovem, acompanha a gastronomia europeia desde tempos imemoriais. Já na Roma Antiga era conhecida, embora sem ocupar o protagonismo da carne de porco, do cordeiro ou da cabra. Escritores como Varrão chegaram a sugerir que o nome “Itália” teria origem na palavra uitulus ou uitellus (bezerro), numa associação poética que sublinha o papel simbólico deste animal.

Com o passar dos séculos, a vitela ganhou espaço nas cozinhas da Europa. Durante o Renascimento, foi considerada uma carne refinada e associada ao luxo. Diz-se que Mazarino, cardeal e estadista francês, aceitava apenas vitelos alimentados exclusivamente com leite, gema de ovo e bolachas — um capricho gastronómico que revela como a vitela se tornou símbolo de distinção à mesa.

Vitela em França, Itália e além

Em França, desde o Ménagier de Paris (séc. XIV), encontram-se receitas de vitela, o que demonstra a sua popularidade muito antes da chegada de Catarina de Médicis, a quem tantas vezes se atribui, sem rigor, a introdução de novos alimentos.

No século XVI, a vitela já era a carne mais delicada e requintada entre os franceses. Mais tarde, a cozinha clássica de Escoffier fixaria definitivamente o seu lugar: nada menos do que 288 receitas de vitela figuram na sua obra monumental.

Em Itália, o país que mais vitela consome até hoje, a carne tornou-se base de pratos icónicos como o vitello tonnato — fatias finíssimas de vitela cozida, cobertas com molho de atum e alcaparras — ou os ossobuco alla milanese, onde a medula do osso é tão valorizada quanto a carne. Não por acaso, Grimod de la Reynière chamou-lhe o “camaleão da cozinha”, pelo seu sabor neutro e capacidade de se transformar em múltiplas expressões culinárias.

Em Inglaterra, a vitela também teve o seu período dourado. O primeiro livro de receitas inglês a mencioná-la data de 1378, e nos séculos seguintes foi muito apreciada em preparações assadas e guisadas.

A tradição portuguesa

Em Portugal, a vitela ocupa um lugar de destaque no receituário tradicional. A mais emblemática será a Vitela Assada à Moda de Lafões, prato identitário da região de Viseu, onde a carne, suculenta e macia, é assada lentamente no forno, regada com vinho, alho e louro.

Outro clássico é a Vitela de Lafões ou de Vouzela, servida em travessas fumegantes que reúnem famílias inteiras em festas e romarias. Na região do Minho, a Vitela Barrosã — proveniente da raça autóctone Barrosã, criada em pasto livre nas montanhas — é considerada uma das carnes de maior qualidade da Península Ibérica.

Não se pode esquecer o Arroz de Vitela do Douro e de Trás-os-Montes, prato de aproveitamento que combina a carne e os ossos para criar um caldo rico e reconfortante. Nas Beiras, a vitela é presença certa em casamentos e celebrações, sempre com um estatuto de carne nobre de festa.

Hoje, em Portugal, a vitela continua a ser valorizada, tanto em restaurantes de cozinha tradicional como em propostas de autor. As Denominações de Origem Protegida (DOP), como a Vitela Barrosã ou a Vitela Maronesa, asseguram não apenas qualidade, mas também a preservação de práticas de criação sustentáveis, em que os animais crescem em liberdade, alimentando-se de pastos naturais.

Uma carne versátil

A vitela presta-se a inúmeras preparações:
  • Assada lentamente, em forno de lenha, até atingir a textura macia que se desfaz na boca.
  • Grelhada, realçando o sabor simples e delicado.
  • Estufada com legumes e vinho, em pratos de conforto familiar.
  • Escalopes panados, como no famoso Wiener Schnitzel, que deve ser tão fino que se possa “ler um jornal através dele”, crocante por fora e suculento por dentro.
  • Molhos clássicos: a redução de ossos de vitela é considerada a base insubstituível de muitos molhos da alta cozinha francesa, como o demi-glace.
Em cada forma, a vitela mostra a sua natureza camaleónica, adaptando-se sem perder elegância.

Entre tradição e desafios modernos

No século XIX, e mais ainda no XX, a produção de vitela sofreu alterações profundas. Em muitos países, surgiram sistemas intensivos que criavam vitelos alimentados exclusivamente com leite, resultando numa carne pálida e sem sabor. Críticas à qualidade e às condições de criação levaram, em alguns casos, a regulamentações mais rigorosas.

Hoje, cresce a procura por vitela de pasto, criada de forma sustentável, sem recurso excessivo a rações industriais. Em Portugal, felizmente, a tradição de criação extensiva, sobretudo em regiões de montanha, continua viva, garantindo carnes de excelência com características únicas.

Reflexão final: a vitela como metáfora da cozinha

A vitela representa a delicadeza e a versatilidade na gastronomia. É uma carne que se adapta, que acolhe sabores e técnicas diferentes, transformando-se em clássico em múltiplas culturas. Em Portugal, mantém-se como símbolo de festa, partilha e identidade regional, um elo entre passado e presente.

Grimod de la Reynière chamou-lhe “camaleão da cozinha”. Talvez tivesse razão. Mas, para além disso, a vitela é também espelho da nossa relação com a comida: um produto que pode ser tanto símbolo de luxo refinado como presença reconfortante na mesa familiar.

E talvez aí resida a sua verdadeira grandeza — no facto de unir simplicidade e sofisticação, tradição e reinvenção, sempre com a promessa de um sabor suave e inesquecível.

Grito de Raiva

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