Bacalhau — o peixe que moldou a mesa e a história de Portugal
Um peixe entre a abundância e a ameaça O bacalhau (Gadus morhua), outrora símbolo de abundância nos mares frios do Atlântico Norte, vive hoje entre o mito e a preocupação ambiental. Cresce lentamente, demora anos a atingir maturidade, mas compensa com uma fertilidade quase desmedida. Durante séculos, isso garantiu a sua sobrevivência. Contudo, o predador humano, com a industrialização da pesca, transformou essa força em fragilidade. As redes de arrasto profundo, usadas por enormes navios-fábrica, devastaram ecossistemas e reduziram drasticamente os stocks. Hoje, fala-se já em risco de extinção em algumas zonas, uma ideia impensável para quem cresceu a vê-lo como peixe inesgotável.
Do mar gelado à mesa medieval O bacalhau é um dos peixes mais importantes da dieta humana, rivalizando apenas com o arenque. Há provas do seu consumo desde a Idade da Pedra, e na Europa medieval tornou-se mercadoria essencial. Nórdicos e franceses disputam o título de primeiros comerciantes de bacalhau salgado e seco, mas é certo que já no século XII era alimento corrente no Ocidente. O segredo do bacalhau sempre esteve na conservação:
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Laberdan: bacalhau fresco salgado;
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Bacalhau seco: desidratado ao ar;
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Bacalhau salgado e seco: o mais resistente, capaz de durar anos sem perder propriedades.
Esta durabilidade fez do bacalhau um companheiro indispensável de viagens marítimas e o único peixe marinho conhecido por povos do interior, antes da refrigeração.
Portugal e o “fiel amigo” Em Portugal, o bacalhau é muito mais do que alimento: é identidade, memória e até religião gastronómica. Chamado de “fiel amigo”, ocupa lugar único na mesa portuguesa, sobretudo nas festividades.
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No Natal, é tradição comer bacalhau cozido com todos, um prato de simplicidade quase bíblica.
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Na Páscoa e durante a Quaresma, quando a Igreja proibia carne, o bacalhau assumia o protagonismo.
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No dia a dia, espalhou-se em receitas que, segundo a sabedoria popular, ultrapassam as 365 formas de o cozinhar — uma para cada dia do ano.
Algumas das mais icónicas incluem:
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Bacalhau à Brás – com batata palha, cebola e ovos mexidos;
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Bacalhau com Natas – cremoso e reconfortante, herança de cozinhas familiares;
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Bacalhau à Gomes de Sá – do Porto para o mundo, com batata, cebola e azeitonas;
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Pataniscas e Pastéis de Bacalhau – símbolos de petisco e partilha;
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Bacalhau Assado na Brasa – regado com azeite e alho, uma celebração da rusticidade.
Mais do que sabor, o bacalhau tornou-se parte do imaginário português, capaz de unir gerações à volta da mesma travessa.
História global, comércio e poder A Era dos Descobrimentos e a expansão marítima portuguesa não podem ser contadas sem o bacalhau. O peixe salgado alimentou marinheiros em longas travessias, garantindo proteína em viagens sem fim. No Atlântico Norte, sobretudo na Terra Nova, encontravam-se bancos de bacalhau quase infinitos. A presença portuguesa nessas águas remonta ao século XVI, antes mesmo de a região ser oficialmente colonizada. Mas o bacalhau não foi apenas sustento: foi também moeda de troca. Durante séculos, integrou o comércio triangular: bacalhau barato para alimentar escravos nas plantações das Caraíbas, pago com melaço, transformado em rum, que depois regressava à Europa e África. Uma história sombria, mas que explica a sua centralidade económica.
A cultura do aproveitamento Poucos peixes oferecem tanta diversidade de cortes e sabores. Para além dos lombos e postas:
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As línguas de bacalhau, iguaria da Terra Nova, ainda hoje apreciadas em Portugal;
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As caras e bochechas, valorizadas na Noruega e também em mesas portuguesas;
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O fígado, base do famoso óleo, mas também consumido fresco em certas tradições;
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As ovas, delicadas e muitas vezes servidas fumadas ou fritas.
Nada se desperdiça — reflexo da sua importância histórica e económica.
Do esplendor à escassez O bacalhau foi durante séculos tão abundante que parecia eterno. Houve até quem chamasse ao período entre os séculos VIII e XI a “Era do Bacalhau”, tal como se fala da Era dos Vikings. Mas a industrialização e a pesca desenfreada mudaram tudo. Hoje, países como a Noruega, Islândia e Canadá impõem quotas rígidas para tentar preservar stocks. Em Portugal, a dependência é total: importa-se praticamente todo o bacalhau consumido, vindo maioritariamente da Noruega e da Islândia. O peixe chega salgado e seco, pronto para ser demolhado nas cozinhas portuguesas, mantendo viva a tradição.
Reflexão final: o eterno amigo O bacalhau é mais do que um peixe. É símbolo de resiliência, de engenho e de identidade nacional. Alimentou marinheiros, sustentou famílias humildes, enriqueceu impérios e hoje continua a reunir portugueses à volta da mesa. Mas também é memória de excessos e de exploração. Lembra-nos que nenhum recurso é infinito e que até o “fiel amigo” precisa de ser protegido. Na sua carne branca, firme e generosa, carrega-se não só o sabor do mar gelado, mas também a história de povos inteiros. E talvez seja essa a sua maior dádiva: ser alimento e, ao mesmo tempo, património vivo da cultura portuguesa.
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