Gordura de Pato ou Ganso: O Luxo Escondido da Cozinha Tradicional
Entre o Rústico e o Sofisticado
Numa época em que tanto se fala de azeites virgens, manteigas clarificadas e alternativas vegetais, há uma gordura que permanece quase em silêncio — a gordura de pato ou de ganso. Não faz parte das prateleiras mais visíveis dos supermercados, nem aparece em receitas rápidas. Mas para quem conhece, é um tesouro gastronómico, um ingrediente que transforma o comum em extraordinário.
Este artigo é um convite a redescobrir esta gordura tão especial — a sua história, como se obtém, onde brilha, e por que razão, mais do que nunca, merece um lugar na nossa cozinha.
Uma Tradição com Sotaque Francês... e Raízes Rurais
A gastronomia francesa fez da gordura de pato (graisse de canard) e de ganso (graisse d’oie) um símbolo de elegância culinária. Mas muito antes dos livros de alta cozinha, esta gordura era usada nas cozinhas camponesas, onde nada se desperdiçava. As aves gordas, especialmente criadas para foie gras, eram aproveitadas em todos os seus elementos — carne, fígado, pele, ossos... e, claro, gordura.
Em regiões como o sudoeste de França, era comum conservar carnes confitadas (cozinhadas e armazenadas na própria gordura), uma técnica ancestral que unia preservação, sabor e segurança alimentar. Em Portugal, embora menos comum, também se usava gordura de pato, sobretudo nas Beiras e no Norte, em pratos de forno e arroz de cabidela.
Como se Obtém Esta Gordura?
A gordura de pato ou ganso é retirada, geralmente, de aves criadas para o consumo da carne ou do fígado. A zona abdominal e a pele acumulam bastante gordura, especialmente em raças criadas ao ar livre, alimentadas com milho e grãos.
O processo é semelhante ao da banha de porco:
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Retira-se a gordura e corta-se em pedaços pequenos
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Derrete-se lentamente em lume brando, sem pressa
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A gordura líquida é coada e armazenada, normalmente em frascos de vidro
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Pode ser temperada com alho, tomilho, louro ou pimenta
O resultado é uma gordura de cor dourada pálida, com aroma delicado, textura cremosa e um ponto de fusão ideal para cozinhar ou conservar alimentos.
Porquê Usar Gordura de Pato ou Ganso?
Porque é simplesmente deliciosa.
Tem um sabor rico, mas subtil, que não domina os alimentos — apenas os realça com uma untuosidade difícil de igualar. Além disso:
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É estável a altas temperaturas, ideal para assar ou fritar
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Confere textura crocante às peles e aos legumes
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Funciona como conservante natural em confits
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Tem uma composição de gorduras mais equilibrada do que se pensa, com percentagem significativa de gorduras monoinsaturadas
Usar esta gordura é quase um ato de respeito culinário — um regresso ao tempo em que se cozinhava com tudo o que a ave dava, e não apenas com os cortes mais bonitos.
Na Cozinha: Um Toque de Nobreza nos Pratos do Dia-a-Dia
A gordura de pato ou ganso pode ser usada de múltiplas formas:
1. Batatas assadas na gordura de pato
Um clássico absoluto. Estaladiças por fora, cremosas por dentro. O segredo está em escaldar as batatas primeiro, e depois assá-las lentamente na gordura.
2. Confit de pato
Pernas de pato cozinhadas lentamente na própria gordura, até ficarem tão tenras que se desfazem ao toque. Um prato de alma e paciência.
3. Legumes salteados
Cenoura, alho-francês, espargos ou couves ganham nova vida salteados nesta gordura. O sabor é subtil, mas marcante.
4. Arroz de forno ou arroz malandrinho
Substitui-se parte do azeite ou manteiga pela gordura de pato. Fica mais untuoso, mais envolvente, mais completo.
5. Pastelaria salgada
Massas de empadas, crostas de tartes salgadas ou até pão rústico. A gordura ajuda a criar texturas crocantes e saborosas.
Marcas e Onde Encontrar
Em Portugal, ainda é difícil encontrar gordura de pato ou ganso nas grandes superfícies, mas há opções:
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Rougié – marca francesa de referência, muito presente em lojas gourmet.
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Jean Floc’h – distribui gordura de pato em frascos, ideal para confits.
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Produtores locais – algumas casas de foie gras ou criadores de pato artesanais (sobretudo no Norte ou no Alentejo) vendem gordura diretamente.
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Mercados e lojas especializadas – especialmente em épocas festivas ou zonas com tradição gastronómica mais forte.
A gordura vem geralmente em frascos de vidro, podendo ser conservada no frigorífico durante várias semanas, ou congelada para uso prolongado.
E Quanto à Saúde?
Surpreendentemente, a gordura de pato tem perfil lipídico semelhante ao azeite, com uma grande percentagem de gorduras monoinsaturadas (principalmente ácido oleico).
Claro, continua a ser uma gordura — e como todas, deve ser usada com moderação. Mas entre as opções animais, é considerada uma das mais equilibradas.
Mais importante do que isso é o contexto geral da alimentação. A gordura de pato, usada ocasionalmente, num prato caseiro, inserida numa dieta equilibrada, não é inimiga — é aliada.
Um Ingrediente com Alma
A gordura de pato ou ganso carrega uma ideia que se perdeu: a ideia de aproveitar tudo, de cozinhar com respeito, com cuidado, com profundidade.
Não é um ingrediente apressado. Não se usa de forma cega. É um gesto de cozinha pensada, sentida, celebrada.
Num mundo que volta a olhar para o essencial, esta gordura representa mais do que sabor. Representa uma forma de estar à mesa, de valorizar o animal por inteiro, de cozinhar com memória e intenção.
Reflexão Final: O Luxo da Simplicidade
Talvez a gordura de pato não esteja na tua despensa. Talvez nunca a tenhas usado. Mas experimentá-la pode ser uma descoberta gastronómica, uma forma de reaproximar-te da cozinha como gesto e não apenas como rotina.
Porque cozinhar não é só alimentar o corpo — é tocar a história, o território, os sentidos.
E às vezes, tudo isso começa com uma colher de gordura dourada, a derreter lentamente numa frigideira quente. A transformar simples batatas num prato que nos fica na memória.